Fazem 30 minutos que ele saiu, e eu sigo juntando os cacos dele. Ele saiu quase agora, e eu fiquei aqui, juntando seus caquinhos espalhados pela sala. Vou reunindo com calma, em silencio, com respeito, com carinho, e colocando todos dentro da caixa que guarda um pouco do seu mundo. Caixa-ludica, espaco psiquico, pedacinho dele, que o ajuda a dar contornos a estes e tantos outros caquinhos dele.
Sempre que sai, ele deixa os brinquedos espalhados pela sala, parece que um furacao passou por aqui. Mas desta vez foi diferente. Nao foi furacao. E a mesma bagunca de sempre, que ele anuncia que nao ira guardar, como sempre, mas hoje nao foi como sempre. Hj nao foram so brinquedos q ficaram. Foram cacos, que ele, silencionsamente, pediu para que eu ajudasse a conter, guardar com cuidado, porque se trata de assunto delicado. Guardar assim, para que ele possa pegar quando quiser, quando puder, novamente, um dia desses, ou agorinha. E se precisar, poder se fazer em caquinhos de novo. E eu contive. Fiquei com os cacos. Pra que ele pudesse sair inteiro. Aqui, ele pode se fazer em pedacos. Sao cacos dele.
Primeiros cacos: o touro, que eu tenho que torear. Touro que quer entrar dentro da minha barriga, quer voltar a ser nenem, ficar bem colado comigo, pra eu leva-lo aonde quer que eu va. Touro que quer se certificar que nao tem outros nenens aqui dentro, e que se tem, que ha um lugar – carinhoso e aconchegante – para ele aqui dentro. Posto esta certficacao, esta na hora da batalha: ok, tem espaco ai pra mim, mas sera que eu nao vou te estragar quando entrar ai dentro? E sera q vc vai sobreviver, vai estar ai? Ou tb vai sumir, quando eu te amar???
Ele tem medo de me maxucar com seu amor voraz. E me mata muito, corta bracos, pernas, me faz em pedacos. Eh sempre venceder, truinfal e muito mais forte que eu. Mas nos ultimos tempos temos lutado com as mesmas armas, ele faz questao. E depois de eu questionar o porque de nossa batalha, ele pede para construirmos a ambulancia. E eu me lembro que a questao nao eh a batalha, mas sim sobreviver no tempo e no espaco, na vida de uma crianca que as coisas somem, sem que ela tenha o menor controle. E quando digo coisa, digo familia, pai, mae, irmaos… Vida de crianca abrigada eh de muito complicado. Ele pega a ambulancia, no seu desejo de reparar a mim, a ela, a vida.
E entao iniciamos um velorio, ele passa a assumir um personagem, o Menino-de-
Mentira, nome dado por ele a um dos seus bonecos. O pai do Menino-de-Mentira morreu pq estava sem emprego. Morreu. E a mae tb morreu, mas esta ja fazia tempo. E dai ficou so o menino-de-mentira e o irmao, sozinhos. No cemiterio, Menino-de-mentira leva seu irmao no colo e ambos choram a morte do pai, que o Menino-de-mentira me conta, muito triste e choroso, que este era o pai mais perfeito que ele tivera.
Ja na porta, pergunta se nao pode levar um brinquedo. Faco a cara de que, vc sabe, ta combinado que nao… Mas entendo que ainda sera preciso mesmo me levar muito, na pele de sei la quantos brinquedos, bolachas, paninhos, para poder construer, descobrir e confiar que ele ja me leva, dentro dele – e eu a ele.
Respiro fundo, e penso que a psicologa-de-verdade acha tudo aquilo muito dolorido e muito bonito. E para nao me fazer em pedacos, colo tudo, nesta historia que escrevo aqui sobre Menino-de-Mentira que Sofre de Verdade.
F.L. - Cada um sabe a dor e a delicia de ser o que e...
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