sábado, 26 de junho de 2010

Maria dos Prazeres

Maria dos Prazeres era uma portuguesa gorda, solteirona, que vendia bolinhos de bacalhau nos finais de semana na esquina da rua Quatorze de Novembro. Depois que a mãezinha tinha falecido de tifo, Maria morava sozinha. Na casa dos fundos vivia Getúlia, uma italiana roceira, que lavava pra fora, e que em troca do aluguel arrumava a casa e cuidava das roupas da dona Maria

A portuguesa jamais saia de casa sem roupa de baixo, combinação, sutien, saiote, meia de seda sete oitavos, saia e blusa fechada até o cangote. Um tarado poderia abordá-la no bonde, aijisus! Mantinha os cabelos sempre presos num coque, com redinha cor marrom. E não conhecia blush nem essas pinturas de mulher da vida.

Certa manhã Getulia avisou que as roupas de baixo da patroa estavam precisando trocar de elástico. Numa dessas, a senhora acaba perdendo as calcinhas no caminho! Maria fez o nome-do-pai-do-filho-e-do-espírito-santo-amém três vezes depois de ouvir isso, repreendendo a roceira que lhe falava aquelas obscenidades. Lembrou a Getulia que nem o doutor a tinha visto sem suas calcinhas, oras! Bateu a porta com força e como era quinta feira, saiu para comprar batatas para seus bolinhos.

Parou na esquina da Augusta para cruzar a rua. E foi ali que sentiu um vento por dentro de sua saia que lhe congelou os olhos. Passou a mão pela cintura. A calcinha já estava lá pelo meio das canelas. Tinha andando, roçando uma coxa gorda na outra, e nem notou que a calcinha ia descendo, assim, pacientemente, até aterrizar sobre os seus sapatos beges. A esta altura, já tinha feito 34 vezes o nome-do-pai, e calculava quantas vezes rezaria o terço para Nossa Senhora de Fátima quando chegasse em casa. Olhou para os lados, ninguém a vista, então sem muito jeito, levantou um pouquinho uma perna, depois a outra, e deixou a calcinha ali, no meio fio. Torcendo para o farol fechar e ela poder sair dali, como se aquilo lá não fosse dela.

Acontece que Maria ignorou a presença de um rapaz de chapéu do lado bem atrás dela. Ele também aguardava o sinal verde. O rapaz se curvou, pegou aquela calcinha abandonada na sarjeta, colocou um rizinho por baixo dos bigodes, deu um passo a frente, tocou a cintura da senhora cheia de carnes, e com a respiração quase no cangote da moça, perguntou, desculpando-se pelo inconveniente de não saber o nome da bela dama, se por acaso aquela roupinha de baixo era dela.

Maria não tinha passado blush, mas as bochechas pegaram fogo naquela hora. A mão do rapaz em sua cintura ia lhe dando uns caloires, aijisus! O meinho das coxas ficou molhado. Corou mais. Esquecendo-se de Maria, das calcinhas e do nome-do-pai, virou para trás e disse ao homem de chapéu do lado: Podes me chamar de Prazeres.


*texto elaborado para oficina de Criação Literária com o professor Marcelino Freire*
 
Fe  Lopes

quarta-feira, 16 de junho de 2010

É das cores que ela ia sentir mais saudades

Chave prateada. Ignição branca ladeada de preto. Um giro, e a partida. Chaveiro de coração tiquetaqueando no painel. Acelera. Fumaça cinza. Adeus. É isso.

Luzes apagadas pela cidade. Quem disse que ela nunca dorme? Tudo preto e branco. É tarde.

Diminui a velocidade, para na faixa de pedestres e dá passagem para o adeus vestido de negro.

Os macarons coloridos do Paris 6, o manjericão da Marguerita, a tinta de lula do Viccolo Nostro, a transparência do DOM em que nunca foi. O painel dos OsGêmeos na 23. O verde burguês do Panamby. Laranja e cinza Jardim Ângela. Cinza céu. Cinza terra. Cinza terra pontilhado de verão. Cinza céu rasgado de fim de tarde de outono. Cinza. Ponto.

Ônibus azul. Um ou outro. Suor pingando cansaço. Fedor desodorante-pobreza. Bolo de fubá amarelinho, chá, café, chocolate bem escuro, por favor. R$ 1,50 cada. Elevador platinado, luz azul, porta abrindo. Mais um café, de maquina agora, tirado ali. Marrom aguado.

Casamento. Loiro, branquelo, boca mole, pele seca, dente amarelo. Todo seco. Oco. Barriga bege jazendo no sofá. Cueca bege, murcha sobre a cama. Cerquinha branca, seriado na TV, pizza de R$ 9,90 na sexta à noite. Noite bege. Cerveja Krill, amarela aguada. Um brinde com ele. Coxinha oleosa, bege. Mixuruca.

Dinheiro? Onde? No bolso, na carteira, no banco, cadê? Já? Onde mesmo a Gislaine orientou investir? Posso sacar quando? Dinheiro verde-água-que-se-esvai.

Você deságua em mim, e eu oceano, baby. Dinheiro. No bolso. Na carteira. Em baixo da cama. No carro. Dentro do capô do carro. No fundo falso do armário falso. Nas bonecas da Juliana. No banco não, tá maluco? Dinheiro verde.

Sinal abriu. Acelerou. As cores. Tiras iluminadas de laranja ficando para trás. Pedrinhas para João e Maria nem pensar. As cores, um pasticho agora, tudo misturado em meio as roupas espalhadas pelo porta-malas. As malas. Acelerou antes que as luzes vermelhas e azuis dessem falta dela. As cores, Juliana, que saudades do cabelo amarelo dela que vai dar, deus do céu. Segurou naquela mão grande e negra-coragem. Acelerou antes que a memória pisasse no freio e desse meia volta. Olhos nos olhos pretos dele. Acelerou. Adeus resto.

É isso. É das cores que ela ia sentir mais saudades.



*texto para oficina de criação literária, Poesia, com o Prof. Donizete*
 
Fe Lopes - é das cores que eu também sinto mais saudades.

domingo, 6 de junho de 2010

Mais três lágrimas e um oceano de coisas.

Era só uma avenida, mas pareceu um oceano. Enorme, inteiro, separando dois continentes. Aqueles mesmos, que na era sei lá qual, tinham tido suas placas tectonicas separadas. Assim, com dor e tudo o mais. Agora um deles regressa para o lado de lá. Vem com uma coragem imensa e algumas tantas rachaduras. E dor e tudo o mais.
Parecia um oceano, mas era mesmo só uma avenida. A avenida que seleva a coragem de ousar querer descobrir para onde os olhares querem ir - e não só para onde são levados - a avenida que um dia separou a infância da vida adulta, que agora materializava os sonhos desfeitos - dos nossos planos é q tenho mais saudades. Essas e tantas outras coisas em apenas um cruzamento.
Andou bem lenta pelo caminho. Parou em todos os farois, ouvindo uma das músicas da trilha do filme Alta Fidelidade - lembrou que gosta muito de trilhas sonoras de filmes. A música falava de uma garota que caiu de amores por alguém, mas que não deu certo. Ela esperou ele escrever uma música pra ela, mas ele não escreveu nunca, e daí ela se foi. E ao ouvir essa frase, enquanto cruzava a avenida, ela chorou uma lágrima. Duas ou três, talvez. Daquelas que escorrem doídas pelo rosto, e daí nem precisam ser muitas mesmo. Lágrimas ressentidas, corajosas e frágeis - mesmo que em se tratando de lágrimas, isso tudo pareça um grande paradoxo.
O farol abriu, os carros na faixa ao lado andaram, mas ela continuava ali, parada. Um minuto de silêncio, pelo mundo que desaguava naquele oceano agora. Um minuto imóvel. Si-lên-ci-o. Se tinham buzinado, se tinha xingado, ela nem viu. Estava ali, vestida de fim, chorando um oceano de coisas em apenas mais três lágrimas dignas dela, do oceano, da avenida, e dele - ainda viriam outras, ela sabia.
De súbito acelerou o carro. E chegou daquele lado de lá.
Fê Lopes - o infinito sou eu.

sexta-feira, 4 de junho de 2010

A duplicidade de Vênus

[republicando]

A duplicidade de Vênus *

Sobre o chão de Vênus
mãos, braços e pernas
onde outrora derreteram-se
mergulhados no infinito,
solidificam-se.

Os lábios de mágico mel,
conhecem agora o gosto acre e salgado
das lágrimas,
que deságuam na boca, e que escorrem
va-
ga
-ro
-sa
-men
-te pelo rosto,
nascidas do canto dos olhos
que se um dia brilharam de encanto,
agora,
mareados, opacos, molhados.

“...e do riso,
fez-se o pranto...”


Involuntariamente
escorre pelo chão de Vênus
o músculo involuntário.
E o corpo dança no ritmo da mais triste bossa nova.
E na dança pulsa,
tristemente,
o corpo pulsa
Dor. Dor. Dor...

Sobre o mesmo chão onde um dia,
fez-se amor em Vênus,
faz-se agora
Fim de caso.

Fe Lopes - *poema meu, escrito em jun/2000, publicado em uma antologia poética de novos autores em 2003... apropriado para o momento.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Dias Raros

"Não queria se entregar mais, apenas compreender o que acontecera. E, num clarão, compreendeu. Era aquilo. Sempre uma ida às coisas e sua sequente despedida. Na mesma hora que ganhava a vivência, nele ela se perdia. Sorte que vinha outra, a cicatrizar a alegria ou abrir nova ferida, também logo substituída. E as pessoas nesse renovar-se, envelhecendo. As pessoas no meio, com suas raízes sujas de terra, cavoucando seus mistérios, bem-querendo-se, e juntas, acima das malqueridas ausências. E todas, o tempo inteiro, indo embora."
João Anzanello Carrascoza, no livro Dias Raros.