Ela caminhou com passos mornos. O dia estava quente e turvo. O sol tingia tudo que via pela frente, sem dó alguma. Mas mesmo assim seus passos eram mornos. Deu então mais uns passinhos desses pequenos e contidos, e estancou na esquina-de-todos-os-dias. Respirou um tantinho, só o suficiente mesmo, e foi. Atravessou a rua e tudo lhe parecia andar em slowmotion - ela só não sabia quem tinha apertado este botão do controle remoto. As horas corriam pesadas, como se verdadeiros hipopotamos estivessem sentados nos ponteiros do relógio, dificultando o bom funcionamento das engrenagens. Curioso é que mesmo assim ela sempre se surprendia quando via que horas eram -já tudo isso? era sua fala-tique recorrente.
Cruzou a rua e então sentou na padaria xexelenta da outra esquina, pediu um pão na chapa e um guaraná zero.O telefone tocou e parecia longe, será que vinha da sua bolsa? Percebeu então que tudo lhe parecia longe. Até mesmo a bolsa carteiro que trazia colada ao corpo. Até mesmo o corpo. Que não parecia colado a nada. E por um instante sentiu o gosto da manteiga escorrer pela sua boca e, sem medo, sorriu lembrando de algo que lera recentemente, sobre enlouquecer. Ficar maluca deve ser assim, pensou. Quando tudo parece lento e longe do corpo. Incluindo o próprio corpo.
Não, não era o caso. Madá não era louca. Não ficaria louca. Não era o caso, repetiu o terceiro psquiatra que ela procurou desde o dia 12 de janeiro, quando saiu com o diploma de jornalismo da universidade - e nada mais nos braços. E por mais que naquele dia fizesse só chover e a brisa gelada fizesse tudo parecer julho, Madá sentiu morno. E esta sensação do morno, desde então, se grudou a ela com superbonder.
Morno a rondava já alguns anos, verdade seja dita. Talvez antes mesmo que ela soubesse que aquilo era morno ele já era o monstro que assombrava suas noites suarentas de lençol grudento. Mas agora, agora morno era presente insistente. Personagem principal, cheio de falas, trejeitos e manias de artistas chatos. Exigia mais de mil toalhas brancas no camarim, não queria sair do palco de jeito algum e quando alguém o desagradava, fazia estardalhaço daqueles que dá vontade de apagar a luz e dormir até não mais acordar - nem precisa apagar a luz, na verdade. E Madá era apenas palco para morno, que as poucos ganhava letras maísculas.
(continua)
Fe Lopes - devaneios e ousadias literárias.
2 comentários:
Fê!
Adorei as metáforas e fiquei muito interessada em saber o que mais vai acontecer!
Acho que meu pedaço preferido é esse:
"Até mesmo o corpo. Que não parecia colado a nada. E por um instante sentiu o gosto da manteiga escorrer pela sua boca e, sem medo, sorriu lembrando de algo que lera recentemente, sobre enlouquecer. Ficar maluca deve ser assim, pensou. Quando tudo parece lento e longe do corpo. Incluindo o próprio corpo."
Gostei da imagem que você fez da loucura!
Amei o ultimo paragrafo!!
Mto bom!
(brigada por ontem! mil vezes!!)
Postar um comentário