domingo, 4 de maio de 2008

Telegrama

Telegrama


O envelope continuava fechado. A carta ainda estava lá dentro, em cima da velha cristaleira. Cecília estava as voltas com o jantar e nem se deu conta que aquele envelope continuava ali, no mesmo lugar.


Hoje era uma noite muito importante na vida dela, amanhã estaria indo pra tão esperada viagem, e para tanto tinha resolvido que faria um jantar de comemoração. Chamou todos os amigos, a família, e decidiu preparar uma despedida. Na cozinha, a tarde inteira, coitada. Mal teve tempo para notar que o carteiro havia passado pela sua casa, deixado a carta debaixo de sua porta e Dna. Maria, a empregada, havia colocado-a em cima da cristaleira.


Ninguém sabia muito bem o que raios Cecília queria com este jantar, na certa achavam que era mais uma das suas festas malucas. Desde que decidiu morar sozinha já tinha feito centenas de jantares e festas naquela casa, os vizinhos nem reclamavam mais, viram que não tinha jeito mesmo. Cecília era assim, intempestiva. Nem ela mesma sabia o que iria fazer nesta viagem, apenas sabia que iria viajar.


Há muitos anos ela tinha este plano na cabeça, tudo muito arquitetado, o que seria de seu futuro. Entrou cedo na faculdade, estudou jornalismo, formada aos 21 anos, conseguiu emprego em uma dessas revistas de fofoca, não era bem o emprego que ela sempre sonhou, mas pagava bem e era isso que neste momento importava. Fez uma matéria sobre o caso de um artista famoso, que estava transando com um jogador de futebol, e daí o salário veio gordo e choveram oportunidades. Tantas que aos 22 Cecília já morava no seu próprio apartamento. Não foi fácil assim, lógico, mas ela batalhou bastante. O carro que o pai tinha dado de presente quando ela fez 18 anos, entrou como parte do pagamento do apartamento, e agora ela voltara a andar de ônibus, o pai não gostou muito de ver o destino que ela tinha dado ao presente, coisas da vida.


Por uns tempos dividiu o apartamento com uma amiga da época da faculdade, daí ela casou e Ciça – como era chamada pelos amigos – acabou ficando sozinha mesmo. O namorado havia sugerido que morassem juntos, mas ela não quis, muito cedo ainda. Isto tudo já tem 2 anos, desde que Ciça deixou a casa dos pais, aceitou aquele emprego, onde conheceu Luiz Eduardo, o namorado, e há 1 semana e meia que ela reservou a passagem pra França.


O que surgiu, de fato foi uma matéria muito boa. O chefe dela na revista queria que ela cobrisse uma premiação em Cannes, e ela aceitou. Era uma coisa rápida, ia durar uma semana apenas. O que Ciça fez foi um acordo, disse pro chefe que faria a matéria, mandaria tudo pela internet e, como não tirava férias desde sabe-se lá deus quando, engrenaria em 1 mês de férias. Ele resistiu, no começo, mas depois acabou cedendo.


Era uma viagem boba, na verdade, seriam apenas as tais merecidas férias. Mas quem disse que precisava durar só um mês?
Cecília sabia que quando contasse pra família seus planos de ficar fora um mês, os pais teriam um chilique. Os amigos dariam aquela força, porque sabiam que ela andava desgostosa da vida, e estava mesmo precisando respirar novos ares, além disto, sabiam o quanto aquele lugar era importante para ela...


O namorado seria um caso a parte. Nunca se sabia o que esperar dele, em alguns momentos era compreensivo, em outros... Foi por isto que Ciça decidiu não contar pra ninguém sobre suas férias. E ela sempre planejou esta viagem, como algo que um dia ainda iria fazer, além de que, isto não era nada demais! Poderia ter ido antes, é verdade, Cecília vem de uma família rica, só que queria viajar pela suas próprias pernas, e agora, era a hora.


Aliás, estava quase na hora dos convidados chegarem. Engraçado que ela tinha certeza que a mãe apareceria em casa com algum prato, como era de costume. Até hoje ela ainda não confiava em ver a filha na cozinha. O pai viria, reclamando que nunca tem lugar pra parar o carro neste prédio, tomaria um whisky com gelo, e talvez conversaria com os demais convidados. A mãe, depois de deixar a comida na cozinha, iria dar uma geral na casa, porque estava tudo sempre tão bagunçado, e só pararia quando visse as pessoas chegando. Juliana, a irmã, provavelmente viria com o namorado e ficaria num canto do sofá, olhando as coisas como se não estivesse ali. Os amigos chegariam com flores, com bebida, e se bobear, com maconha. Ela tinha dito que era uma festa familiar, que não queria ver um sinal de back naquela casa, mas ia ser difícil. Aliás, precisava tirar o resto da maconha que tinha deixado em cima da pia do banheiro - o melhor lugar pra dexavar. Se Luiz visse, ficaria uma fera. Este era outro também, que logo, logo deve estar batendo na porta, pontual do jeito que ele é. Com certeza ia reclamar do trânsito, tentar transar com ela em cima da mesa da cozinha, ou de qualquer outro canto da casa, porque ainda estava cedo, sempre há tempo para uma rapidinha, se recusaria a usar camisinha porque “fica muito apertado”, ela ia pegar a borrachuda feminina, ele ia dizer que não dava tempo, corta o clima, tal, tal, e se ela dissesse não, ele ia ficar com aquela cara amarrada a noite inteira. Roteiro conhecido.


O jantar estava todo terminado. A casa inteira perfumada de ervas finas e vinho, muito vinho. Durante a preparação ela mais tomou vinho do que usou, daí o molho que era para ser de vinho branco e alecrim se transformou em ervas finas com vinagre de maçã. Pelo menos estava tudo pronto.


Seguiu para o quarto com o resto de vinho numa taça de cristal. Ainda eram 7 horas e os convidados deveriam chegar só às 8 da noite. Foi ao banheiro, pegou o bagulho que ainda restava, não ia jogar fora, bolou, e acendou um pra relaxar. Colocou um jazz e ficou lá, jogada na cama, olhando pro teto e fumando maconha. Amanhã não estaria mais naquele quarto, nem naquela cama. Ia ser só um mês de férias, mas já era tempo pra burro, ainda mais pra ela, que a última viagem longa que tinha feito tinha sido quando completou 15 anos. A cabeça dela parecia um turbilhão, nem a mala tinha feito ainda, meu Deus do céu. Terminou o vinho, o baseado e foi pro banho.


***


O som rolava no rádio, enquanto ela lavava os cabelos. A roupa estava escolhida, em cima da cama. Um vestido de seda vinho, as sandálias pretas que usou no natal passado, e mais nada. Lingerie não tinha escolhido nenhuma, sutien não podia colocar, porque o vestido era totalmente aberto nas costas e calcinha, ah meu bem, pra que calcinha? Até o ginecologista já tinha falado pra ela que não era bom usar calcinha, e ela aderiu totalmente.


Vestiu o vestido, droga, tinha engordado e agora ficavam umas marcas na roupa – “Maldição, mas já era. Deve ser a larica de tanto back que eu tenho fumado. Porra de vestido justo também. E ainda tenho que colocar essa sandalinha, que dá ultima vez me deu bolha... Nossa, quinze pras 8 e nem maquiada eu tô. Preciso de mais vinho. Onde eu deixei o vinho?”


Correu pra cozinha, tomou um grande gole de vinho, fez uma maquiagem rápida, sombra colorida, baton, rimel. Básico. Arrumou os longos cachos, de uns tempos pra cá acobreados, e foi pra sala... O perfume, quase esqueceu. Faz tempo que usava o mesmo, já tinha virado quase supertição, tinha um cheiro forte e doce, muito doce, mas não enjoado - isto nunca.


Passou o perfume por todo o corpo. Apagou a luz. A campainha tocou.


***


- Oi amor, chegou bem na horinha, né? - o sorriso despontava amarelo nos lábios cor de vinho de Ciça.


Luiz entrou, desceu a mão pela cintura dela, como sempre fazia. Notou que, como sempre também, ela estava sem calcinha. Fingiu como sempre, supresa. Beijou o pescoço, e como sempre, a apertou com furia. Cecília, como sempre também, já sabia o que vinha depois. Com tanto vinho na sua corrente sanguínea, o tesão era grande, e ela foi logo abrindo o ziper da calça do malandro, que mais do que depressa já tinha sentado Ciça na mesa da sala e já estava mostrando serviço, como ele mesmo gostava de dizer. Pra acabar logo com aquilo, Cecília gemia no ouvido dele, fingindo gozar. Foi quando a campainha tocou de novo. Ótimo.


- Oi Mãe! Falei pra senhora que não precisava trazer nada, mãe. – arrumando o vestido e os cabelos.


- A filhinha é só uma maionese e uma carne assada. A gente nunca sabe se todos os convidados comem as coisas que a gente faz. Vou colocar lá na cozinha. Queridinha, a Ju mandou avisar que vai chegar mais tarde, ela vem com aquele namorado dela, não tem problema, não é mesmo? Ah, trouxe um bolo de chocolate com suspiros, que eu sei que você gosta e nunca consegue preparar direito, não é mesmo filhota?


- Nossa, em Cecília, este prédio tá cada dia pior, não é minha filha? Não tinha um lugar pra deixar o carro! É o fim da picada. Eu não me conformo com todos estes carros parados aí fora... você convida a gente pra jantar aqui e não tem lugar pra estacionar? Já falei pra sua mãe, esta é a ul...


- João, pelo amor de Deus, deixa a sua filha em paz.


- Não, mas Luiz você não acha? Que absurdo. Eu já nem vinha, porque toda vez é o mesmo inferno, mas tua mãe disse que você pediu muito...


- Amor, traz uma cerveja pra gente?!


As palavras entravam na cabeça dela como uma coisa mecânica, ela só concordava, ou sorria. De vez em quando falava alguma bobagem, alguma coisa do trabalho. A mãe agora percorria a casa, arrumando tudo, colocando os porta retratos no lugar, colando água nas plantinhas, ia acabar encontrando a carta na cristaleira antes de Ciça, e se bobear, era até capaz de ler. O pai e o Luiz tomavam um drink no sofá e falavam da corrida de formula 1 do domingo de manhã. A campainha tocou novamente.


Era a turma inteira. Como todos couberam no elevador é um mistério. Pelo o olhar, estavam todos limpos, que bom, pensou, menos encrenca com a família e o namorado. Logo depois, chegaram os tios, primos, a Ju e o namorado, todos. Até 9 horas já estava todo mundo sentado, ouvindo um som, jogando conversa fora e comendo torradas com patê de atum. O pessoal bebia bastante, e quando Maíra, a amiga com quem Cecília tinha morado há um ano e meio atrás, começou a querer desligar o som pra brincar de Karaokê, Cecília viu que estava na hora de servir a comida, um pouco de glicose atenuaria os efeitos daquele monte de álcool.


Antes que pudesse terminar de pensar em servir o jantar a mãe já tinha colocado a mesa completa. A tal carne assada esperava pelos convidados.


- Queridos, vamos jantar?? A carne assada esta deliciosa!!- disse a mãe.


- E aí Ciça, o que de tão importante você queria com este jantar?


- É mesmo, amor, você ainda não falou nada sobre o motivo deste jantar...


Antes mesmo que Luiz pudesse colocar o ponto final na sua frase, o telefone tocou. Era para ela. Os convidados continuavam na sala, comendo animadamente, enquanto ela ia atender no quarto.


- Olá Cecília. - Só pelo jeito de falar ela já tinha reconhecido a voz fanhosa do seu editor.


- Olá Marco, tudo bem com vc?


- Ótimo minha cara, recebeu meu telegrama?


- Telegrama? Não, não recebi nada.


- Então por isto que você ainda não me ligou. Bem, querida, antes mesmo que você tenha a dor de cabeça de colocar cem casacos na sua mala, e confirmar a passagem, estou ligando pra te comunicar que houve uma mudança de planos. Não faremos mais a cobertura do evento em Cannes, não haverá mais viagem e...


- Mas..


- ...então, vejo você na segunda feira bem cedo no escritório, ok?


Ela estava muda do outro lado da linha.


- O.k.


Como assim? Como assim antes de fazer as malas? E a passagem? Como assim? E as férias? Quem disse que o problema eram as malas? E os planos? Os sonhos? Como assim? Jogados?


Antes mesmo que desse tempo dos olhos encherem de lágrimas, voltou para o jantar.


- Quem era, filha?


- Ninguém importante, mãe. E aí? Gostando da festa?


- Você ainda não disse o motivo da comemoração.


- Então, vamos pegar mais um vinho, e eu falarei.


Seguiu pra cozinha, trouxe o vinho. Falaria o que o vinho mandasse.


- Luiz, resolvi fazer tudo isto porque gostaria de pedir você em casamento.


- Que? – Todos mudos, enquanto Luiz não sabia o que dizer. Na verdade nem Ciça sabia o que estava falando, mas foi a primeira coisa que ocorreu e ela só se deu conta do que falara quando ouviu a própria voz.


- E aí, vai ficar mudo?!


Luiz caminhou até ela, com os olhos mareados e deu um beijo terno em sua mão, dizendo um sim quase inaudível.


Depois disso a festa seguiu tranquilamente, todos muito felizes. Apenas Ciça conserva um olhar distante. Percorria com os olhos... da porta, até o banheiro, passando pela cozinha, pela sala, o som, a cachorra dormindo no canto da sala de tv. Casa velha e conhecida. Morada, porto seguro.


Aos poucos as pessoas forma dispersando, e um a um foram embora, ainda embasbacados com a história de Ciça pedir Luiz em casamento. Só ela não sorria. E logo, logo, se viu só, as voltas com a bagunça da casa.



Levantou-se do sofá, tirou a sandália salto 10, jogou num canto da sala. Mica quase acordou com o barulho do salto batendo no assoalho da sala, balançou o rabinho, e deitou-se de novo.


Respirou profundamente, olhou pro som, colocou Lenny Kravitz, pegou mais uma garrafa de vinho, procurou se ainda tinha bagulho, mas não achou nada. Não estava na fissura de ligar pro Tony pedindo maconha às 3 da manhã. O vinho dava pro gasto. Abriu a garrafa, deu um grande gole, sorvendo o máximo que podia, de uma só vez. Sentia o vinho descer macio pela sua garganta e desabar no estômago. Uma gota escorreu pelo canto da sua boca e pacientemente ela limpou a gotinha teimosa, nisso deixou que a garrafa escorregasse de sua mão e se espatifasse no chão, quebrando em mil pedaços. Os cacos estavam por todos os lados, e o vinho já tingia todo o sofá de vermelho.


Tentou juntar os cacos, conter o vinho, mas era tarde para conter. Era tarde. Tarde pra tudo. Jogou-se no chão, juntou-se aos cacos e ao vinho derramado, e deixou as lágrimas escorrerem quentes pelo rosto. Meu Deus do céu, que vida é esta? Que vida maldita é esta?


Do chão, avistou um envelope marrom em cima da cristaleira. Devia ser ele. Como não tinha visto antes? Com dificuldade, ergueu-se do chão, pegou o envelope, colocou junto ao peito. Abriu de uma vez só. No alto lia-se urgente, dentro o conteúdo já era conhecido, viagem cancelada. Em um movimento só, rasgou aquilo em cem pedaços e jogou janela a baixo.


Sentou-se na varando, olhando as estrelas. Um caco havia entrado na sua pele e ela via o sangue escorrendo devagar pelas mãos. Apertou fortemente aquele pedaço de vidro, e sentiu muita dor, dor, muita dor. Queria saber se estava viva, se ainda era capaz de sentir alguma coisa, se aquele corpo ainda era dela, se aquela vida ainda era dela, se ela ainda era dela.


Respirou fundo, levantou, seguiu para o quarto de dormir. Em cima da cama, a passagem que o boy tinha deixado na sua casa ontem, reluzia o dia do embarque: domingo, 25 de Março, 22 horas.


Ligou o chuveiro. Tirou a roupa. Entrou no banho.




A água escorria doce e lenta pelo corpo inerte de Cecília. As memórias lhe viam aos olhos a todo instante, e quando pensava na garrafa de Chatô que havia se quebrado, via seus sonhos boiando dentro do vinho, que agora tinha se esparramado pela sala. Meu Deus, que droga de vida é esta? era a frase que se repetia como um daquels mantras da aula de yoga.
***
Como de costume, na manhã seguinte Dna. Norma ligou querendo saber se a casa já estava arrumada, se precisava de ajuda. Igualzinho as outras manhãs, a secretária eletrônica denunciava que não tinha ninguém mais na casa, e como todas as manhãs, ela tentou ligar no celular, e igual a todas as manhãs, Cecília não atendeu, Dna Norma deixou um recado pedindo o retorno da ligação e foi tomar café... Como sempre, abriu a porta para pegar o jornal que já deveria estar lá, porém, diferente de todas as manhãs, em cima das manchetes calamitosas, reluzia um envelope vermelho, com os dizeres “a todos”, sem titubear, abriu a carta e leu:

“ Era uma vez uma menina que vivia numa terra muito longe daqui. Era uma menina doce, tinha uma vida boa, e até já era prometida a um tal de Príncipe Encantado. Numa certa noite, porém, a jovem garota teve um sonho. Sonhou ganhar o mundo e ao fazer isto descobrir a si mesma. E o sonho durou a noite toda e a manhã seguinte, e a outra noite, a outra manhã, e... Então a menina decidiu que iria procurar a fada madrinha e lhe pedir que realizasse seu desejo. Na manhã seguinte a menina foi lá, pediu a fada o que queria, e quando o pedido estava se materializando diante de seus olhos, a menina descobriu que tudo aquilo não passava de um sonho. Triste, correu para o coração da floresta, quando teve a sublime certeza de que não precisaria da fada madrinha para realizar seu desejo, faria isto por si mesma...Cecília."

***
Durante o banho Cecília chorou, e chorando teve uma idéia insana. Já era tarde da noite. Saiu do chuveiro depois de uma hora, sem lágrimas para secar. Tinha um olhar decido na face; colocou seu pijama e dormiu o sono mais profundo de toda a sua vida.

Pontualmente às 6 horas Mica estava abanando o rabo ao lado da cama de Cecília. Pontualmente às 7 horas Cecília levantou-se, vestiu aquele jeans velho, uma camiseta branca e pontualmente às 7:30 estava tomando café da manhã, e pontualmente às 8 horas já estava fora de casa. Mas pontualmente às 8:15 Cecília não chegou ao escritório. Cecília nunca mais chegaria ao escritório.

Firmou os passos, entrou no carro, dirigiu-se, rápida e insana, para a casa da mãe. No caminho não pensava em nada. Neste momento Cecília era só ação. Largou um bilhete em cima do jornal dos pais. Continuou, frenética, o seu caminho. Seguiu para a Barra da Tijuca.

Aquelas pessoas andando, carros correndo no fluxo contrário, contas a pagar, problemas a resolver. Nada mais afetava Cecília. Ela agora era menina, que descia do carro correndo, com sede de mar, areia e sol. Mergulhou na onda. Mergulhou. E naquela hora sentiu todo aquele torpor que vinha sendo sua vida nos últimos anos. Chega. Do torpor e desta vida, entediada... um amontoado de repetições, chega. Onde estava a vida da sua vida? Onde?

Deitou ao sol, calmamente... enterrou seu celular na areia. Adeus. Ainda se ouvia o som do toque, era a velha vida de Cecília q a chamava, vez ou outra, vamos menina, volte para o mundo real. Entregou-se ao sol e mais nada.

Deixou o sol secar a roupa, que colava na sua pele molhada. Levantou, e foi direto ao encontro do seu destino.


Menina-que-quer-ser-escritora.


Textoterapia cardíaca: A bicicleta da Mariana

Então a bicicleta amarela foi para oficina pela primeira vez! Mariana, dona da bicicleta, ficaria uma semana sem passear com as amigas! Teriam que achar outra coisa pra brincar.

Mariana era a mais nova da turma, cardíaca, há pouco tempo tinha feito uma cirurgia e finalmente podia brincar de bike sem se cansar nem mais nem menos que as outras meninas. Andava, andava, feliz da vida. Do alto dos seus 5 anos de idade, sabia bem o que significava poder andar de bike na sua breve existência conturbada. Digo conturbada porque criança com problema de coração, sabe, madura antes do que as outras frutas! Mas tem um lado bom, brinca de montão quando vai pra brinquedoteca do hospital e ganha presente à beça! Em compensação, sente dor pra caramba depois da operação. Dói mesmo, precisa de ver aquele monte de grampo dentro do peito da gente. Tem que ter coragem, viu?!

Agora, eu fico aqui pensando, o que será que os namorados vão achar quando ela tirar a blusa, lá pelos seus dezoito anos? Porque sabe, a pessoa cresce, o corpo cresce... a cicatriz cresce também. Bem, mas isto é preocupação pra quando a pessoa cresce!

A pessoa cresce! Frase boba essa, mas Mariana sabia bem o peso. Crescer era um sonho pra alguém que estava fadada a não crescer. Não viver. Ela então, agora pode dizer que vai crescer. Talvez não cresça. Talvez a Roberta também não cresça. Não faz mal. Agora ela é normal, tem perspectiva. Pode morrer amanhã tanto quanto a Roberta, a Juzinha e Carol. Não pode morrer mais que as outras. Agora pode igual e poder igual é um poder incrível! Apesar de que, não podemos negar, saber de tudo isso quando a gente ainda tem 5 anos é ser um poucão diferente das outras companheiras de bike, né? Mas, isso não importa. Quer dizer, importar importa, mas o que é isso diante de poder andar de bicicleta? Diante de um coração que bate, as vezes meio descompassado, mas que bate o suficiente pra dar pra andar de bicicleta com a turma de amigas? Diante de ter turma de amigas? Pois se este coração não estivesse aí não daria nem pra estar chateada por não poder andar de bike, porque a gente só chateia por algo quando a gente já experimentou, senão não faria diferença ficar sem a bike, pra quem nunca ficou com, não é mesmo? Seria apenas mais uma semana sem bicicleta, como as outras... Aliás, capaz dela nem quebrar, nunca teria sido usada mesmo!!

Agora é isto! Mariana vai ficar uma semana emburrada esperando sua magrela voltar do conserto! E como é bom ficar emburrada por isso!!!!

Casa

Então ela desceu as escadas, apagou as luzes e ficou ali, sentada no último degrau. Tudo escuro, silêncio, mãe dormindo, todos dormindo. Só ela ali, sentanda na escada. Ao menos esta hora podia ficar ali, sentada na escada sozinha, contemplando o nada, fazendo nada, pensando em nada ou em alguma coisa, se assim fosse, se assim quisesse, se assim acontecesse...

Casa estranha essa, pensava. Tanta gente que anda e que corre de um lado pro outro. Comida pra cá, pra lá. Aula disso, daquilo, palestras, linha, agulha, dr. disso, dr. daquilo, brinquedos que nunca tinha visto, gente que vem e fica um monte de tempo, gente que vem e vai logo, gente que vem só pra olhar, gente a sorrir e a cantar - tá vendo, vira até música!

Música de uma casa, mas não daquela muito engraçada, sem teto, sem nada. Música desta casa, pedaço de concreto, erguido nesta tal selva de pedra, com tijolos de vidro pra deixar o sol entrar e o pensamento sair, podendo andar por aí, a solta, a caça, a deriva. Casa com pessoas, de pessoas, para pessoas. Casa de coração, com coração, para coração de pessoas, com pessoas, para pessoas de coração.

Casa de amigos. De angustias. Casa de esperança. Casa de desespero. Casa de encontros e desencontros. Casa de pessoas de todos os cantos e dos cantos todos. Casa de coração feliz, triste, doente, apertado, amargurado, saudável, esquisito, apaixonado, saudoso, querido, esperado, novo, operado, deslumbrado, conhecido, antigo, preocupado, orgulhoso, alegre, do sul, do norte, nordeste, sudeste, que toma banho de rio, de mar, que nunca viu o mar, de sol, chuva, de brincadeiras. Enfim, coração destes que a gente tem no peito ... e que pulsam em compassos que as vezes fazem valsas, outras meregue, tango, rumba, maracatu, samba, minueto, rock, balada pra amar...

Casa-de-apoio, ela leu numa placa logo em frente a escada. E então, apoiando-se nos degrus, levantou, subiu pro quarto, cobriu a mãe, deitou e deixou que seu coração naquele momento, dentro daquela casa cheia de casas, soasse apenas uma canção de ninar.

F. L. - boa noite.

Bolha de Sabão

"Cada vez que respiramos, afastamos a morte que nos ameaça (...). No final, ela vence, pois desde o nascimento esse é nosso destino e ela brinca um pouco com sua presa antes de comê-la. Mas continuamos vivendo com grande interesse e inquietação pelo maior tempo possível, da mesma forma que sopramos uma bolha de sabão até ficar bem grande, embora tenhamos absoluta certeza de que vai estourar" (Shoupenhauer: 1969, vol. 1, p.311)

A Menina passeia pelas estradas, olha uma flor aqui, um pássaro ali, corre um pouco, ofega, descansa sentada perto de uma árvore de maçãs. Anda outro pouco, brinca com o vento, com as borboletas coloridas. E leva na mão sua bolha de sabão, que ela insuflou há muito tempo, lá longe... e desde então a carrega nas mãos. Com delicadeza ela a passa de uma mão para outra, jogando cuidadosamente. Brincando com a fragilidade e força daquela bolha, que ainda mantem-se translucida e brilhosa nas suas mãos. É sua eterna companheira. Aonde esta, a bolha esta. Sempre com ela, junto a ela. Sabe, isso as vezes cansa, chateia e então ela tem vontade de estourar logo aquela bolha chata, arremessar para bem longe dela! As vezes até faz isso, imagina só! E a bolha fica fraca, quase transaparente, parecendo que vai se dissolver no ar. Daí as vezes ela se apavora, com medo de ficar sem a bolha e corre logo a cuidar dela. Outras vezes, bem, outras vezes esta tão cansada que nem liga, imagina!

Dizem lá no vilarejo que ela mora, que todos temos a nossa bolha de sabão conosco. Alguns a carregam nas mãos logo cedo; outros só vão se dar conta dela mais tarde; outros podem nunca perceber que ela estava ali, só quando ela estoura; e outros, imagina só, brincam com ela como se ela nunca fosse estourar! Até parece!!! Todo mundo sabe que a única verdade imutável deste mundo é que todas as bolhas de sabão estouram um dia.

A Menina era uma dessas pessoas que logo cedo descobriu sua bolha de sabão. E mais cedo ainda descobriu que cedo ou tarde, ela se esvairia, transparente no ar. A Menina, na sua meninice, descobriu também que tinha que carregar a bolha com cuidado, pelos caminhos da vida afora. Jogar a bolha de mão em mão era até gostoso, mas sempre lhe lembrava que hora ou outra essa bolha ia estourar. E isso não era nada gostoso. Não era gostoso menina na meninice descobrir que hora ou outra a bolha estoura. Não era não. Deixava a meninice com um pouco de adultice, sabe como é? Fruta que madura antes no pé?!

Menina na meninice não entende bem essas coisas de bolha de sabão e de bolha de sabão que estoura. Porque menina na meninice sabe mais é que tem uma bolha lá, bonita, legal a beça, pra gente brincar a beça!! Quer mais é se divertir com ela, nem pensa que bolha de sabão pode estourar. Tudo pode acontecer, menos acabar a brincadeira de ser menina na meninice com bolha de sabão para brincar até láaaaaaaaa longe..... Mas essa Menina da nossa história era uma menina diferente, que já na meninice entendia tudo isso, que as vezes nem gente grande sabe! E por isso tinha horas que aquela bolha pesava um tantão assim, ô!! Então a Menina falava bem baixinho pra um ou outro que cruzava seu caminho: "Ajuda a carregar, ajuda?"

F.L.