segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Patinho - e vc, tem fome de que?

Pra celebrar a comilança de fim de ano!

Texto criado durante as oficinas do Marcelino Freire. Elaborado a partir da primeira frase enviada pela autora Ivana Arruda Leite (em itálico), que também colaborou com a edição final do conto.

Patinho

O amor vem de um lugar muito fundo e escuro, doutor. É lá que ele nasce, é lá que deve morrer*. Foi assim com o Antero. Homem lindo, macio, era um filé o Antero. A gente falava assim na época, sabe? Pois é, amei muito ele, já disse pro senhor. Amei 17 anos e 4 meses. Quando ele me conheceu eu ainda usava saia plissada. A mesma que ele tirou no décimo segundo encontro. Papai tinha ido abastecer o açougue e mamãe passava o dia atrás do caixa. Casa vazia, saia no chão. O resultado, doutor? Nove meses depois a saia plissada não servia mais. Culpa da Marina, aquela mais alta ali na foto. Nasceu de fórceps. 2kg e 900gm. Ficou linda vestida de daminha no nosso casamento: vestido godê, saia de tule. Ela adorava contar isso na escola. Era a única da sala que assistiu o casamento dos pais. Falava com a boca cheia. Aqui? Não, aqui ela não vem me ver, doutor. Nem pra trazer algo pra comer, nada. O senhor já viu a lavagem que servem aqui? Dia de festa quando tem um bifinho. E vem duro que nem sola de sapato. Detesto carne dura.

Marina era muito apegada ao pai. Não entendeu o que aconteceu. Contratou aquele advogado de gel no cabelo e calça risca de giz, o senhor viu, não viu? Deve ter feito até empréstimo pra pagar. Minha filha não olhou uma vez pra mim no julgamento. Me condenou antes da sentença, o senhor sabe disso, não sabe doutor? Já chorei tanto por isso que secou.

Marina chegou em casa logo depois que eu tinha limpado a cozinha. Acho que ela sabia da Helena, aquela piranhazinha loira. Se não fosse a Helena... Amiga de colégio da Marina. Fiz muito bolo de cenoura pro café da tarde delas. Sempre gostei de cozinhar, já disse ao senhor? Helena adorava meus bolos, frequentou lá em casa desde quando elas ainda usavam vestidinho amarelo, aquele do uniforme das madres, sabe? Helena era da família já. O problema começou quando elas passaram a usar saia plissada pra ir pra escola. Helena, carne dura e cor de rosinha à mostra no sofá da sala. Antero era doido por saia plissada. Tirou a minha no décimo segundo encontro, já disse isso pro senhor. Tirou a da Helena no décimo segundo aniversário da Marina. Doze era o numero da sorte dele, ele sempre dizia isso.

Eu sempre soube, doutor. Trancava a porta do quarto e ligava a TV naqueles programas de culinária que passam à tarde, sabe? Na quarta receita a Helena já estava fechando o portão. Esse livro aqui é todinho das receitas que eu anotei, o senhor quer dar uma olhada?

Helena era boa menina, não reclamava. Acho que ela gostava, isso sim. Quem não gostava de Antero? Helena nunca me enganou. E eu não me importava porque depois era minha vez. Ele vinha doido pra me comer. Até tapa na cara me dava. Acho que era pra me amaciar. E eu ia trabalhar de óculos escuros no dia seguinte, orgulhosa. Ah, Antero, amei tanto ele, doutor, senhor não imagina quanto.

Foi na feijoada do Zé que eu percebi que a saia plissada não servia mais na Helena. As carnes tudo saindo pelo zíper. O pai dela disse que ia denunciar pra polícia. Antero ficou louco. Era um menino, doutor! A desgraçada ia ter um menino. Antero era doido pra ter filho homem e eu era oca de homem. Deus não foi bom comigo. Antero fez as malas naquela noite mesmo, antes do jantar.

Na feijoada eu o vi falando pro pai da Helena que ia criar o menino, que tava apaixonado, ia morar com ela, o senhor acredita? Helena sorriu. Não disse que ela gostava, aquela piranhazinha? Lá mesmo na feijoada ele falou pra mim que ia me largar pra ficar com ela. Eu deixei a costelinha no prato, limpei a boca e fui pra casa. Antero foi logo atrás, pegou uma mala no armário e foi colocando as roupas. E eu colocando batatas na panela de pressão. Chamei ele pra jantar, ele disse que da minha comida não ia comer mais. O que aquela lá vai te dar pra comer, Antero? Carne dura, cor de rosa e sem banha, ele me disse assim, seco, duro de engolir, viu doutor. Daí ele foi pro quartinho dos fundos. E eu fui adiantando o molho da carne: azeite, alho, cebola e coloquei alecrim pra deixar perfumado. Não gosto de carne dura. Antero ia embora. Ia sem jantar. Patinho com batatas, molho de alecrim e arroz branco. Coloquei a receita no livro, bem aqui.

Marina chegou quando eu tava enterrando os ossos. As costelas eu dei pro Faísca. Ela chamou a policia. Marina é vegetariana, contei pro senhor? A Helena perdeu o bebê e também virou vegetariana.

Foi isso que aconteceu naquele dia, doutor. E é por isso que eu estou aqui comendo essa lavagem que não se dá nem pros porcos. Troco umas receitas com a Marta, a moça que tranca as portas aqui. Ela acabou de casar mas não sabe cozinhar. Mulher casada tem que saber cozinhar, não é doutor? Marta até fez um xerox do meu livro de receitas, a danadinha! Daí fez esta moela a milanesa e me trouxe pra provar. Que gentileza, não é doutor? Quer uma? Tá bem molinha. Já disse que não gosto de carne dura, não disse?

Fe Lopes - A gente não quer só comida.

Um comentário:

Jú Pacheco disse...

Muuuuuito bom!!
Eu diria: um dos seus melhores!!!!